Mario Waddington
Era uma linda manhã de segunda-feira, do dia 23 de abril do ano de 2007. O Sol e o calor estavam intensos, mas adornados por um lindo céu azul e nuvens brancas. Uma ligeira brisa vinda do sul suavizava os rostos suados dos devotos, que aglomerados em frente à Igreja de São Jorge - o Santo Guerreiro ou o Orixá conhecido por Ogum, entre os seguidores da sincrética Umbanda, assistiam a uma celebração religiosa em sua homenagem. Era uma missa campal realizada ao lado do arborizado e histórico Campo de Santana, que um dia serviu para o treinamento militar das forças do Império Brasileiro na triste guerra do Paraguai.
O velho e mal conservado relógio da Central do Brasil marcava, numa das suas quatro faces, 8h30min, embora o meu indicasse 10 horas. Muitos se vestiam com as cores vermelha e branca, ou ostentavam camisetas com a estampa da figura do santo, com seu cavalo empinado e o diabólico dragão transpassado pela lança do divino cavaleiro. Era um magnífico show de fé, cores, fitas e flores. Muitas barraquinhas vendiam, além de gordurosas ou adocicadas comidas típicas, pequenas lembranças do milagroso para serem bentas e servirem de amuleto até a próxima festa.
O sermão do pároco foi perfeito, vestindo uma casula vermelha para aquela celebração, conseguiu, em pouco tempo, numa síntese perfeita e em boa oratória, levar mensagens de conciliação familiar e de comportamento social. Eu olhava para as pessoas e via seus olhos atentos às palavras do reverendo, como preocupadas em não perder uma só virgula. O público, de diversas camadas sociais e raças, em sua maioria de pessoas de gostos simples, se apertavam entre si em torno do palanque eclesiástico. Fiquei ali tentando entender aquela fugaz e íntima relação entre o Divino e os homens. Estes prometiam o que não iam cumprir e Deus, na sua infinita paciência, fingia acreditar, aguardando um dia a concretização daquelas palavras ajuramentadas, mas falseadas na sua essência.
Uma mulher de meia idade, de olhar grave atrás de óculos de grossa armação, num meticuloso coque grisalho, em trajes fechados, escondendo seu volumoso corpo, portando uma carcomida bíblia, passou rapidamente ao largo da turba, falando sobre o pecado da idolatria das imagens. A atitude insana e incoerente daquela religiosa fanática foi, surpreendentemente, ignorada por todos, e, não encontrando eco nas suas palavras apocalípticas, desapareceu como por encanto, engolida, talvez, pela própria intolerância.
O culto terminou com a aspersão de água benta, seguida de uma salva de palmas e gritos de “Salve São Jorge”. Muitas lágrimas escorriam das faces endurecidas pela vida difícil e de suaves rostos juvenis que esperam, com incrível ingenuidade, um futuro melhor daquele vivido por seus pais. Lembrei-me dos malditos políticos e autoridades corruptos; de um Brasil deteriorado pela cobiça e mentiras; de um povo massacrado pela violência e impunidade; do futuro incerto dos jovens; da miséria. Comovi-me, levantei repentinamente os braços sob a força da indignação e gritei bem alto para o santo ouvir: “Salve-nos, São Jorge! Livra-nos dos dragões!”
Com o fim da missa e a dispersão dos devotos, tentei entrar na igreja através de uma das três imensas filas. Acabei optando por uma que se estendia ao longo da Rua da Alfândega. Era a única que não era castigada pelo Sol das 11 horas, já que estava protegida pela sombra do velho casario do antigo mercado do Saara. Lentamente e pacientemente eu e os devotos aguardamos, com a humildade do pedinte, a vez de nos defrontarmos com as nossas consciências e fraquezas, de encararmos aquele ser sobrenatural e magnânimo, de rogarmos a tolerância do Santo, reconhecendo, no íntimo de nossa alma, o grandioso mistério que nos envolve, vigia, acata, acolhe e liberta, por entendermos, no íntimo de nossa alma, a limitação da qual somos prisioneiros.
A abordagem insistente dos vendedores de fitas vermelhas, com o nome do Santo venerado gravados; pedintes; vendedores de refrigerantes; pagadores de promessas que distribuíam santinhos com a imagem do guerreiro, na verdade, não era de todo mal, já que ajudava a passar o tempo com aqueles tipos curiosos. Mancomunados com a energia sagrada que envolvia o ambiente, as atitudes respeitosas e fraternas entre os presentes eram quase que obrigatórias.
Finalmente, no átrio do templo santo, gradativamente fui me aproximando do grande salão. Consegui visualizar distante a venerada imagem, em tamanho real, de São Jorge. Como um rio, cuja corrente é interceptada por uma grande pedra, aquela massa humana parava em frente à imagem em tamanho real, para prosseguir em seguida seu curso, rumo à saída do templo.
Fui me aproximando lentamente, sem pressa, impulsionado pela massa de fiéis, todos de olhos fixos no Santo, fazendo em sussurro suas preces, e rogando por sua misericórdia e auxílio. Repentinamente, alguém enlevado por sua alegria e fé saudava o Santo guerreiro, e todos repetiam, em uníssono, com muito fervor.
Algum tempo depois, impossível de ser calculado, consegui encostar minhas mãos na grade que protegia o Guerreiro dos ansiosos devotos. Lá estava Ele, o Santo Romano, o Soldado da Fé, o Orixá Ogum, o Cavaleiro destemido decapitado por não renegar sua fé no Cristo de Deus. Fui absorvido pela expressão de seus olhos, tinham um ar de compaixão, de tolerância infinita, de amor caridoso. Fiquei enlevado, agradecido, senti-me parte de toda aquela energia que brotava das almas presentes. Era o momento dos milagres, pois a sintonia estava perfeita com o universo divino.
Procurei pelo dragão e não o encontrei. Onde estaria? Só vi o Cavaleiro e o Cavalo! Por quê? A tríade famosa não existia naquele lugar. Seria ruim a simbologia do mal na Igreja, mesmo transpassado e derrotado pela lança do destemido Guerreiro? Deixei-me levar pelas minhas reflexões, buscando as razões em meu inconsciente, nas minhas lembranças e recordações. Subitamente entendi, o dragão simbolizava a nossa ignorância, os nossos erros, a nossa intolerância, e todos os sentimentos ruins que cultivamos durante nossa efêmera existência. O Cavaleiro era alma e, o Cavalo, o corpo, que vivem em eterna luta contra os dragões por nós criados. Emblemavam a nossa luta diária, e por que não dizer eterna, para o nosso aprimoramento, nossa elevação diante de Deus. Quando o Cavalo padece, fraco está o Cavaleiro e forte está o dragão.
Larguei a grade e, ao sabor da corrente humana, fui de encontro à saída. Entrei em uma imensa sala repleta de lembranças daquele dia festivo. Comprei alguma coisa para ajudar na manutenção do templo e retirei-me. Do lado de fora escutei os sinos repicarem, anunciando a celebração de uma nova missa. Olhei para as torres da Igreja e, silenciosamente, agradeci aquele momento de entendimento, de aprendizado, prometendo retornar, se Deus quiser, aquele momento solene de união entre minha alma, meu corpo e minha elevação, para mais uma reflexão de um solitário peregrino.