terça-feira, 25 de setembro de 2007

O MÉDICO E EU

Mario Waddington

Numa tarde chuvosa e fria de quinta-feira, num final da primavera, estava como um náufrago tentando vencer a tenebrosa vaga humana, quase que perpétua da Avenida Rio Branco, se não existisse a quietude do negro véu da madrugada. Maltratava-me o frio que sentia através das pernas das minhas calças molhadas, açoitadas pelo vento gélido e úmido que insistia em me castigar. Meus cabelos dançavam como cobras da Medusa, e minha fronte, encharcada, gotejava como um velho prédio sem marquise. Algo me machucava internamente, fazendo-me escravo da dúvida, do medo, levando-me a equilibrar-me mentalmente dizendo: você está bem, siga em frente!
Pessoas humildes estorvavam o fluxo das pessoas apressadas, desatenciosas e barulhentas, algumas se postavam na minha frente, oferecendo pequenos papéis de empresas duvidosas, emprestando dinheiro fácil, sem comprovação de renda, ou convidando-me a relaxar numa terma, enaltecendo as qualidades das prostitutas ali existentes. Deixava-me tonto tudo aquilo, pois embaralhava minhas inseguranças com a balbúrdia de uma cidade mal educada, tendo como fundo o irritante som das buzinas e os insistentes gritos dos camelôs, negociando mercadorias “pirateadas”, sob os olhares desatentos da polícia.
Chegando finalmente ao prédio do consultório do cardiologista, admirei a sua entrada que se assemelhava à portaria de um hotel de luxo, de 4 estrelas, não mais, considerando os trajes galaneados dos seus funcionários e da sua suntuosa entrada.
Indaguei a um porteiro, preocupadamente solícito, sobre o rumo que deveria tomar para chegar ao andar procurado. Apontou-me para um conjunto de elevadores à direita, e, em voz clara e audível, que colocaria inveja a um locutor de rádio, afirmou-me que qualquer um daqueles me levaria ao local desejado. Obedecendo prontamente entrei em um elevador falante que me informava, em voz feminina e austera, os andares pelos quais passava, assim como se estava subindo ou descendo. Existia naquele cubículo uma câmara que me observava curiosamente, esperando talvez que fizesse alguma macaquice, já que estava só e livre da severidade dos olhos alheios.
Ao entrar no gabinete médico, após passar pelo crivo dos pacientes sonolentos, que aguardavam o atendimento, apresentei-me à recepcionista que estava preocupada com um diálogo idiota entre dois excêntricos personagens de uma novela mexicana. Uma hora depois, fui finalmente encaminhado ao cardiologista, dando graças a Deus, já que não agüentava mais ficar olhando para a cara dos outros pacientes e ler revistas de fatos já ocorridos há meses.
O médico que me atendeu contrastava com a minha detalhada linguagem descritiva, de tão objetivo que era. Rápido como um raio fez-me perguntas, respondia com sagacidade as minhas explicações e lia com a presteza de um escrivão a papelada dos exames que apresentei. Ao tentar um monólogo sobre a minha triste sorte, na mesma intensidade do melodrama mexicano da sala de espera, ponderou-me de imediato que deveria procurar um especialista para tais casos de desconcerto existencial, e tratou-me de me colocar em uma cama para um eletrocardiograma e exames de praxe. Estava com a pressão arterial de 17 por 10, disse ele em voz sussurrante e preocupada, ensaiando um personagem shakespeariano. Enquanto realizava o eletro, meu espírito divagava. Nos meus pensamentos, via o coração como ponto da emoção, dos sentimentos, do amor, mas aquele especialista o enxergava como uma máquina encrencada, enferrujada e desgastada pelo uso, mas que precisava funcionar como um relógio suíço. A ilusão da vida é interessante, pois ela é que promove os sonhos e encanta a existência. Sem ela, acredito, a vida numa metrópole seria insuportável.
Terminados os exames, acrescentou-me mais um remédio para ajudar a estabilizar a minha pressão arterial, agradeceu-me a presença e solicitou-me que voltasse na sexta-feira da outra semana, para verificar a situação da mesma. Recomendou-me, ainda, que fizesse exercícios e controlasse o sal na minha alimentação. Agradeci, despedi-me da secretária e dos sonolentos pacientes, que, por sua vez, não me deram nenhuma atenção. Em alguns segundos, já estava na maldita rua barulhenta, envolta num tempo sem cor e brilho, rodeado de pessoas estranhas e sem essência, num mundo do faz de conta, protegido apenas com um diminuto guarda-chuva de camelô, da tempestade que tentava limpar todas as impurezas por nós criadas e deixadas descuidadamente no nosso passar.
Indo para o ponto do ônibus, pensava: seguirei o exemplo do querido poeta Manuel Bandeira; também irei embora pra Passárgada, pois, com certeza, lá também sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que quero, na cama que escolherei! Vou-me embora pra Passárgada, pois lá descansarei.

(30/11/2006)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

CHUVA NOTURNA

Mario Waddington

Vens devagar, à noite e sorrateira,
Denunciando, através das folhas, o teu chegar.
Fria, silenciosa, com teu corpo pulverizado no vento a dançar, penso:
O que representas? Quem és? O que queres? Qual o teu segredo?
Por que tudo se emudece com a tua misteriosa presença?

Repentino o ribombar do trovão, severo tutor da água,
Revelando num claror, outeiros e vales, com o raio que fulgura impetuoso,
Denunciando obscuros lugares à procura do medo.
É forte o teu murmurar, o teu pisar, a tua presença.

Aumentas a tua intensidade,
Como lágrimas de desespero,
Na tortura do vento que procura escravizar esse sofrimento,
No divino movimento de uma criativa força descomunal.

Tudo se movimenta com a energia acelerada do néctar despejado,
Vegetais se abrem para receber a vida,
Troncos são limpos dos galhos e folhas ressequidas,
E o forte alísio, impiedoso, açoita os ramos,
Fazendo-os entoar melancólicas melodias.

Inúmeros córregos repentinos invadem como soldados,
Com as suas armas barrentas,
À terra desesperada,
À procura de desabrigados e fugitivos de sua força arrebatadora.

Mas a misericórdia divina
Torna efêmera a intensidade do prodigioso momento.
Por não conhecer a morte,
Ameniza a força e concede a brandura da aragem,
Mas, sob o domínio da garoa, a noite torna-se prudente.

A negritude do momento, amparada pelo silêncio,
Tudo aquieta sob um frio manto.
As aves noturnas, em respeitoso vôo,
Movimentam-se sem alarde,
Como se estivessem em um templo.

Meu coração busca pela luz do dia,
Mas minha alma leva-me às lembranças de outrora.
Acomodo-me e aqueço-me,
Uma torrente de lágrimas de felicidade corre sobre minha face,
E descubro agora o sentido da chuva.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O CAVALEIRO - reflexões peregrinas

Mario Waddington

Era uma linda manhã de segunda-feira, do dia 23 de abril do ano de 2007. O Sol e o calor estavam intensos, mas adornados por um lindo céu azul e nuvens brancas. Uma ligeira brisa vinda do sul suavizava os rostos suados dos devotos, que aglomerados em frente à Igreja de São Jorge - o Santo Guerreiro ou o Orixá conhecido por Ogum, entre os seguidores da sincrética Umbanda, assistiam a uma celebração religiosa em sua homenagem. Era uma missa campal realizada ao lado do arborizado e histórico Campo de Santana, que um dia serviu para o treinamento militar das forças do Império Brasileiro na triste guerra do Paraguai.
O velho e mal conservado relógio da Central do Brasil marcava, numa das suas quatro faces, 8h30min, embora o meu indicasse 10 horas. Muitos se vestiam com as cores vermelha e branca, ou ostentavam camisetas com a estampa da figura do santo, com seu cavalo empinado e o diabólico dragão transpassado pela lança do divino cavaleiro. Era um magnífico show de fé, cores, fitas e flores. Muitas barraquinhas vendiam, além de gordurosas ou adocicadas comidas típicas, pequenas lembranças do milagroso para serem bentas e servirem de amuleto até a próxima festa.
O sermão do pároco foi perfeito, vestindo uma casula vermelha para aquela celebração, conseguiu, em pouco tempo, numa síntese perfeita e em boa oratória, levar mensagens de conciliação familiar e de comportamento social. Eu olhava para as pessoas e via seus olhos atentos às palavras do reverendo, como preocupadas em não perder uma só virgula. O público, de diversas camadas sociais e raças, em sua maioria de pessoas de gostos simples, se apertavam entre si em torno do palanque eclesiástico. Fiquei ali tentando entender aquela fugaz e íntima relação entre o Divino e os homens. Estes prometiam o que não iam cumprir e Deus, na sua infinita paciência, fingia acreditar, aguardando um dia a concretização daquelas palavras ajuramentadas, mas falseadas na sua essência.
Uma mulher de meia idade, de olhar grave atrás de óculos de grossa armação, num meticuloso coque grisalho, em trajes fechados, escondendo seu volumoso corpo, portando uma carcomida bíblia, passou rapidamente ao largo da turba, falando sobre o pecado da idolatria das imagens. A atitude insana e incoerente daquela religiosa fanática foi, surpreendentemente, ignorada por todos, e, não encontrando eco nas suas palavras apocalípticas, desapareceu como por encanto, engolida, talvez, pela própria intolerância.
O culto terminou com a aspersão de água benta, seguida de uma salva de palmas e gritos de “Salve São Jorge”. Muitas lágrimas escorriam das faces endurecidas pela vida difícil e de suaves rostos juvenis que esperam, com incrível ingenuidade, um futuro melhor daquele vivido por seus pais. Lembrei-me dos malditos políticos e autoridades corruptos; de um Brasil deteriorado pela cobiça e mentiras; de um povo massacrado pela violência e impunidade; do futuro incerto dos jovens; da miséria. Comovi-me, levantei repentinamente os braços sob a força da indignação e gritei bem alto para o santo ouvir: “Salve-nos, São Jorge! Livra-nos dos dragões!”
Com o fim da missa e a dispersão dos devotos, tentei entrar na igreja através de uma das três imensas filas. Acabei optando por uma que se estendia ao longo da Rua da Alfândega. Era a única que não era castigada pelo Sol das 11 horas, já que estava protegida pela sombra do velho casario do antigo mercado do Saara. Lentamente e pacientemente eu e os devotos aguardamos, com a humildade do pedinte, a vez de nos defrontarmos com as nossas consciências e fraquezas, de encararmos aquele ser sobrenatural e magnânimo, de rogarmos a tolerância do Santo, reconhecendo, no íntimo de nossa alma, o grandioso mistério que nos envolve, vigia, acata, acolhe e liberta, por entendermos, no íntimo de nossa alma, a limitação da qual somos prisioneiros.
A abordagem insistente dos vendedores de fitas vermelhas, com o nome do Santo venerado gravados; pedintes; vendedores de refrigerantes; pagadores de promessas que distribuíam santinhos com a imagem do guerreiro, na verdade, não era de todo mal, já que ajudava a passar o tempo com aqueles tipos curiosos. Mancomunados com a energia sagrada que envolvia o ambiente, as atitudes respeitosas e fraternas entre os presentes eram quase que obrigatórias.
Finalmente, no átrio do templo santo, gradativamente fui me aproximando do grande salão. Consegui visualizar distante a venerada imagem, em tamanho real, de São Jorge. Como um rio, cuja corrente é interceptada por uma grande pedra, aquela massa humana parava em frente à imagem em tamanho real, para prosseguir em seguida seu curso, rumo à saída do templo.
Fui me aproximando lentamente, sem pressa, impulsionado pela massa de fiéis, todos de olhos fixos no Santo, fazendo em sussurro suas preces, e rogando por sua misericórdia e auxílio. Repentinamente, alguém enlevado por sua alegria e fé saudava o Santo guerreiro, e todos repetiam, em uníssono, com muito fervor.
Algum tempo depois, impossível de ser calculado, consegui encostar minhas mãos na grade que protegia o Guerreiro dos ansiosos devotos. Lá estava Ele, o Santo Romano, o Soldado da Fé, o Orixá Ogum, o Cavaleiro destemido decapitado por não renegar sua fé no Cristo de Deus. Fui absorvido pela expressão de seus olhos, tinham um ar de compaixão, de tolerância infinita, de amor caridoso. Fiquei enlevado, agradecido, senti-me parte de toda aquela energia que brotava das almas presentes. Era o momento dos milagres, pois a sintonia estava perfeita com o universo divino.
Procurei pelo dragão e não o encontrei. Onde estaria? Só vi o Cavaleiro e o Cavalo! Por quê? A tríade famosa não existia naquele lugar. Seria ruim a simbologia do mal na Igreja, mesmo transpassado e derrotado pela lança do destemido Guerreiro? Deixei-me levar pelas minhas reflexões, buscando as razões em meu inconsciente, nas minhas lembranças e recordações. Subitamente entendi, o dragão simbolizava a nossa ignorância, os nossos erros, a nossa intolerância, e todos os sentimentos ruins que cultivamos durante nossa efêmera existência. O Cavaleiro era alma e, o Cavalo, o corpo, que vivem em eterna luta contra os dragões por nós criados. Emblemavam a nossa luta diária, e por que não dizer eterna, para o nosso aprimoramento, nossa elevação diante de Deus. Quando o Cavalo padece, fraco está o Cavaleiro e forte está o dragão.
Larguei a grade e, ao sabor da corrente humana, fui de encontro à saída. Entrei em uma imensa sala repleta de lembranças daquele dia festivo. Comprei alguma coisa para ajudar na manutenção do templo e retirei-me. Do lado de fora escutei os sinos repicarem, anunciando a celebração de uma nova missa. Olhei para as torres da Igreja e, silenciosamente, agradeci aquele momento de entendimento, de aprendizado, prometendo retornar, se Deus quiser, aquele momento solene de união entre minha alma, meu corpo e minha elevação, para mais uma reflexão de um solitário peregrino.



SEREI O VENTO

Mario Waddington

Um dia, serei o vento que te encontrará em qualquer lugar,
Que desarrumará teus cabelos, deixando-os loucos, indecisos, suplicantes para afagar.
Que alisará tua pele em busca do teu aroma e frescor,
Fechando teus olhos, sentindo tua boca, embriagando-se com teu calor, teu ardor, arvoando-se de prazer.
Um dia, serei o vento que murmurará em teus ouvidos palavras inaudíveis de paixão,
Envolvendo teu corpo num efêmero abraço sem fim.
Que fará estremecê-la e ver em tua boca um singelo sorriso de prazer.
Que buscará tuas verdades e mentiras, teus medos e receios, tuas vontades e recusas, para achar a tua essência.
Um dia, serei o vento que encontrará os verdadeiros sentidos em tão doce criatura,
Que se inebriará com a energia do teu ser, na força irresistível e invisível do xamânico ar.

SENTIMENTO DE PAZ

Mario Waddington

Sinto o vento e o aroma da flor.
Sinto os olhares dos anjos
Que me acariciam com sua eterna tolerância.
Sinto o amor das palavras dirigidas a mim,
Como flechas envenenadas de carinho, cor e brilho.
Sinto a paz e a suave musica da noite convidando-me a reflexão.
Preciso voar,
Alcançar altura suficiente para ver além do horizonte.
Quero me juntar ao Sol para renascer diariamente e morrer com a Lua,
Para viver eternamente um grande e inesquecível tempo de amor.