Mario Waddington
Numa tarde chuvosa e fria de quinta-feira, num final da primavera, estava como um náufrago tentando vencer a tenebrosa vaga humana, quase que perpétua da Avenida Rio Branco, se não existisse a quietude do negro véu da madrugada. Maltratava-me o frio que sentia através das pernas das minhas calças molhadas, açoitadas pelo vento gélido e úmido que insistia em me castigar. Meus cabelos dançavam como cobras da Medusa, e minha fronte, encharcada, gotejava como um velho prédio sem marquise. Algo me machucava internamente, fazendo-me escravo da dúvida, do medo, levando-me a equilibrar-me mentalmente dizendo: você está bem, siga em frente!
Pessoas humildes estorvavam o fluxo das pessoas apressadas, desatenciosas e barulhentas, algumas se postavam na minha frente, oferecendo pequenos papéis de empresas duvidosas, emprestando dinheiro fácil, sem comprovação de renda, ou convidando-me a relaxar numa terma, enaltecendo as qualidades das prostitutas ali existentes. Deixava-me tonto tudo aquilo, pois embaralhava minhas inseguranças com a balbúrdia de uma cidade mal educada, tendo como fundo o irritante som das buzinas e os insistentes gritos dos camelôs, negociando mercadorias “pirateadas”, sob os olhares desatentos da polícia.
Chegando finalmente ao prédio do consultório do cardiologista, admirei a sua entrada que se assemelhava à portaria de um hotel de luxo, de 4 estrelas, não mais, considerando os trajes galaneados dos seus funcionários e da sua suntuosa entrada.
Indaguei a um porteiro, preocupadamente solícito, sobre o rumo que deveria tomar para chegar ao andar procurado. Apontou-me para um conjunto de elevadores à direita, e, em voz clara e audível, que colocaria inveja a um locutor de rádio, afirmou-me que qualquer um daqueles me levaria ao local desejado. Obedecendo prontamente entrei em um elevador falante que me informava, em voz feminina e austera, os andares pelos quais passava, assim como se estava subindo ou descendo. Existia naquele cubículo uma câmara que me observava curiosamente, esperando talvez que fizesse alguma macaquice, já que estava só e livre da severidade dos olhos alheios.
Ao entrar no gabinete médico, após passar pelo crivo dos pacientes sonolentos, que aguardavam o atendimento, apresentei-me à recepcionista que estava preocupada com um diálogo idiota entre dois excêntricos personagens de uma novela mexicana. Uma hora depois, fui finalmente encaminhado ao cardiologista, dando graças a Deus, já que não agüentava mais ficar olhando para a cara dos outros pacientes e ler revistas de fatos já ocorridos há meses.
O médico que me atendeu contrastava com a minha detalhada linguagem descritiva, de tão objetivo que era. Rápido como um raio fez-me perguntas, respondia com sagacidade as minhas explicações e lia com a presteza de um escrivão a papelada dos exames que apresentei. Ao tentar um monólogo sobre a minha triste sorte, na mesma intensidade do melodrama mexicano da sala de espera, ponderou-me de imediato que deveria procurar um especialista para tais casos de desconcerto existencial, e tratou-me de me colocar em uma cama para um eletrocardiograma e exames de praxe. Estava com a pressão arterial de 17 por 10, disse ele em voz sussurrante e preocupada, ensaiando um personagem shakespeariano. Enquanto realizava o eletro, meu espírito divagava. Nos meus pensamentos, via o coração como ponto da emoção, dos sentimentos, do amor, mas aquele especialista o enxergava como uma máquina encrencada, enferrujada e desgastada pelo uso, mas que precisava funcionar como um relógio suíço. A ilusão da vida é interessante, pois ela é que promove os sonhos e encanta a existência. Sem ela, acredito, a vida numa metrópole seria insuportável.
Terminados os exames, acrescentou-me mais um remédio para ajudar a estabilizar a minha pressão arterial, agradeceu-me a presença e solicitou-me que voltasse na sexta-feira da outra semana, para verificar a situação da mesma. Recomendou-me, ainda, que fizesse exercícios e controlasse o sal na minha alimentação. Agradeci, despedi-me da secretária e dos sonolentos pacientes, que, por sua vez, não me deram nenhuma atenção. Em alguns segundos, já estava na maldita rua barulhenta, envolta num tempo sem cor e brilho, rodeado de pessoas estranhas e sem essência, num mundo do faz de conta, protegido apenas com um diminuto guarda-chuva de camelô, da tempestade que tentava limpar todas as impurezas por nós criadas e deixadas descuidadamente no nosso passar.
Indo para o ponto do ônibus, pensava: seguirei o exemplo do querido poeta Manuel Bandeira; também irei embora pra Passárgada, pois, com certeza, lá também sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que quero, na cama que escolherei! Vou-me embora pra Passárgada, pois lá descansarei.
(30/11/2006)